quinta-feira, 7 de abril de 2011

O Bicho



o bicho vivia na mata; livre, selvagem, indomado
caçando se tinha fome, dormindo se tinha sono, copulando quando no cio
o bicho era bicho solto

um dia, um pedaço de carne numa clareira, e o bicho seduzido
o bicho era sorrateiro, apanhava a barganha e fugia rápido, quase imperceptível
e todo dia ele voltava naquele lugar
e todo dia havia pedaço de carne mais suculento que o anterior
conquistado pela oferta fácil e cada vez mais abundante
o bicho abriu a guarda
o bicho acostumou
o bicho foi aprisionado

colocaram-no numa gaiola
tiraram-no do seu mato
reproduziram seu ambiente em plástico
naquele zoo
o bicho estava para ser visto
o bicho estava domado
o bicho era bicho cativo

dia após dia gente passava pelo seu cárcere
olhavam-no com curiosidade, ofereciam-lhe alimento
esperavam ansiosamente o momento
em que o bicho fosse bicho
tão agradável e seguro que ele fosse bicho dali de dentro!
que deleite aquelas barras de ferro, que maravilha, finalmente temos o bicho!

mas o bicho, murcho. sem vida. sem cor.
sem saber se ainda era bicho, ou se era artefato
“queremos ver o bicho rugir!”- diziam
e o adestrador cutucava o bicho, espezinhava o bicho, provocava o bicho
o bicho rugia, toda a gente aplaudia
davam-lhe mais uma porção, e passavam adiante
o próximo bicho, o próximo habitat inventado

e ficou assim até o seu fim
criado domesticado, esperando uma mão entre as grades,
um pedaço de carne e um agrado,
alguém qualquer que quisesse seu rugido murcho de bicho- espetáculo.


"O bicho, meu Deus, era um homem."
Manuel Bandeira

segunda-feira, 4 de abril de 2011

O último desabafo que faço por você


 E então você chegou. Tímida, isolada, sentou em uma das últimas cadeiras, no fundo da sala. Os cabelos presos em um rabo de cavalo perfeito, aquele típico All Star oscilando entre a cor braca e creme, e você mordendo a pontinha do dedo indicador com uma cara meio inexpressiva.
 Te observei, cada detalhe, cada ato. Não apenas pela beleza física, mas também por sentir que você exalava algo diferente. Emanava mais força do que delicadeza, transmitia uma naturalidade incrível, parecia possuir mais atitude do que a maioria das meninas de sua idade. E nossos olhares se encontravam. Você devia me achar muito estranho, e eu era (sou) mesmo!
 Você foi se enturmando, se abrindo, e começamos a conversar. Formamos aquele grupinho esquisito, porém legal, e você se mostrando e confirmando tudo o que eu já achava que fosse. O tempo agia, e junto dele meu sentimento por você se mostrava mais claro e mais forte, à cada prova de matemática, exercícios de genética e textos de filosofia.
 Vários olhares cobiçosos cairam sobre você, cantadas, caras querendo ficar com você e, olha só, até pedido de namoro aconteceu. E eu reprimindo a minha vontade de dizer o que você já sabia, mas queria ouvir da minha boca. Talvez eu não me achasse bom o bastante pra você, e este sempre foi o meu problema, "achar" demais, pensar em excesso. Perdi oportunidades com você, inclusive uma, que considero a mais importante, que surgiu numa certa noite de festa junina escolar. Aliás, você insiste em dizer que não se lembra do que aconteceu.
 Uma das melhores e piores características do ser humano é que ele se adapta às situações. E assim aconteceu. Vieram as crises de ciúme exagerado, perguntas incômodas, gastos absurdos com conta de telefone. Transformei meu MSN em um santuário seu. E me acomodei. Me acostumei com toda a situação.Você provavelmente foi se incomodando, ficando frustrada com minha falta de coragem e atitude. Mas você se divertiu também, não é? Riu do meu vício, da minha insistência em te colocar em um pedestal, do meu ciúme bobo e descontrolado. Mas isso não importa mais. Só te culpo pelo único fato de ter agido de uma forma que me fez permanecer neste erro ainda por um bom tempo.
 E hoje aqui estamos nós, ambos seguindo em frente, você insistente na arte de me ignorar. Mas eu precisava disso, precisava decretar o desabafo final. Achei que fosse algo parecido com a morte, em que você aprende a viver sem a pessoa, porém sempre sobra aquela saudade, até mesmo inaceitação, inconformidade. Mas eu estava errado. Tem sido bem mais fácil que isso.
 E caso chegue a ler isso algum dia, não se ofenda. Sou apenas eu, exercendo meu desapego.

domingo, 3 de abril de 2011

O Porteiro do Puteiro

 Não havia no povoado pior ofício do que 'porteiro do prostíbulo'. Mas que outra coisa poderia fazer aquele homem? O fato é que nunca tinha aprendido a ler nem escrever, não tinha nenhuma outra atividade ou ofício.
 Um dia, entrou como gerente do puteiro um jovem cheio de ideias, criativo e empreendedor, que decidiu modernizar o estabelecimento. Fez mudanças e chamou os funcionários para as novas instruções.
Ao porteiro disse:
 - A partir de hoje, o senhor, além de ficar na portaria, vai preparar um relatório semanal onde registrará a quantidade de pessoas que entram e seus comentários e reclamações sobre os serviços.
 - Eu adoraria fazer isso, senhor - Balbuciou - Mas eu não sei ler nem escrever!
 - Ah! Quanto eu sinto! Mas se é assim, já não poderá seguir trabalhando aqui.
 - Mas senhor, não pode me despedir, eu trabalhei nisto a minha vida inteira, não sei fazer outra coisa.
 - Olhe, eu compreendo, mas não posso fazer nada pelo senhor. Vamos dar-lhe uma boa indenização e espero que encontre algo que fazer. Eu sinto muito, e que tenha sorte.
 Sem mais nem menos, deu meia volta e foi embora. O porteiro sentiu como se o mundo desmoronasse. Que fazer?
 Lembrou que no prostíbulo, quando quebrava alguma cadeira ou mesa, ele a arrumava, com cuidado e carinho. Pensou que esta poderia ser uma boa ocupação até conseguir um emprego. Mas só contava com alguns pregos enferrujados e um alicate mal conservado. Usaria o dinheiro da indenização para comprar uma caixa de ferramentas completa. Como o povoado não tinha casa de ferramentas, deveria viajar dois dias em uma mula para ir ao povoado mais próximo para realizar a compra. E assim o fez.
 No seu regresso, um vizinho bateu á sua porta:
 - Venho perguntar se você tem um martelo para me emprestar.
 - Sim, acabo de comprá-lo, mas eu preciso dele para trabalhar... já que...
 - Bom, mas eu o devolverei amanhã bem cedo.
 - Se é assim, está bom.
 Na manhã seguinte, como havia prometido, o vizinho bateu à porta e disse:
 - Olha, eu ainda preciso do martelo. Porque você não o vende para mim?
 - Não, eu preciso dele para trabalhar e além do mais, a casa de ferragens mais próxima está a dois dias de viagem sobre a mula.
 - Façamos um trato - disse o vizinho - Eu pagarei os dias de ida e volta mais o preço do martelo, já que você está sem trabalho no momento. Que lhe parece?
 Realmente, isto lhe daria trabalho por mais dois dias... aceitou. Voltou a montar na sua mula e viajou.
 No seu regresso, outro vizinho o esperava na porta de sua casa.
 - Olá, vizinho. Você vendeu um martelo a nosso amigo. Eu necessito de algumas ferramentas, estou disposto a pagar-lhe seus dias de viagem, mais um pequeno lucro para que você as compre para mim, pois não disponho de tempo para viajar para fazer compras. Que lhe parece?
 O ex-porteiro abriu sua caixa de ferramentas e seu vizinho escolheu um alicate, uma chave de fenda, um martelo e uma talhadeira. Pagou e foi embora. E nosso amigo guardou as palavras que escutara: "não disponho de tempo para viajar para fazer compras". Se isto fosse certo, muita gente poderia necessitar que ele viajasse para trazer as ferramentas...
 Na viagem seguinte, arriscou um pouco mais de dinheiro trazendo mais ferramentas do que as que havia vendido. De fato, poderia economizar algum tempo em viagens.
 A notícia começou a se espalhar pelo povoado e muitos, querendo economizar a viagem, faziam encomendas. Agora, como vendedor de ferramentas, uma vez por semana viajava e trazia o que precisavam seus clientes.
 Com o tempo, alugou um galpão para estocar as ferramentas e alguns meses depois, comprou uma vitrine e um balcão e transformou o galpão na primeira loja de ferragens do povoado. Todos estavam contentes e compravam dele. Já não viajava, os fabricantes lhe enviavam seus pedidos. Ele era um bom cliente.
 O tempo passava, e as pessoas dos povoados vizinhos preferiam comprar na sua loja de ferramentas, do que gastar dias em viagens.
 Um dia ele lembrou de um amigo seu que era torneiro e ferreiro, e pensou que este poderia fabricar as cabeças dos martelos. E logo, por que não, as chaves de fendas, os alicates, as talhadeiras, etc... E após foram os pregos e os parafusos...
 Em poucos anos, nosso amigo se transformou, com seu trabalho, em um rico e próspero fabricante de ferramentas. Um dia decidiu doar uma escola ao povoado. Nela, além de ler e escrever, as crianças aprenderiam algum ofício. No dia da inauguração da escola, o prefeito lhe entregou as chaves da cidade, o abraçou e lhe disse:
 - É com grande orgulho e gratidão que lhe pedimos que nos conceda a honra de colocar a sua assinatura na primeira página do livro de atas desta nova escola.
 - A honra seria minha - disse o homem - Seria a coisa que mais me daria prazer, assinar o livro, mas eu não sei ler nem escrever, sou analfabeto.
 - O senhor?!?! - disse o prefeito sem acreditar - O senhor construiu um império industrial sem saber ler nem escrever? Estou abismado! Eu pergunto: o que teria sido do senhor se soubesse ler e escrever?
 - Isso eu posso responder - disse o homem com calma - Se eu soubesse ler e escrever... ainda seria o PORTEIRO DO PUTEIRO!!!